sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Reportagem de Rodrigo Teixeira


Com 15 milhões de discos vendidos, Perla é um verdadeiro fenômeno musical da América do Sul

Perla é dona de uma trajetória ímpar dentro do panorama da música sul-americana. A paraguaia de 57 anos é a cantora do continente que fez maior sucesso no Brasil. Os números de sua carreira são impressionantes: 15 milhões de discos vendidos, 54 álbuns gravados, 11 discos de ouro, 2 de platina, 1 de platina duplo, cinco vezes em primeiro lugar na Bilboard Latina, apresentações para Charles de Gaulle, Rainha Elizabeth, Príncipe Charles... A sina de ser uma “porta-bandeira de duas nações” começou em 1971, quando Perla – seu nome de batismo é Ermelinda Pedroso Rodríguez D'Almeida - se casou com um brasileiro descendente de portugueses e se mudou para o Brasil com 20 anos. Até hoje a cantora instiga comentários sobre a sua nacionalidade. Para muitos conterrâneos, inclusive, ela é brasileira. Mas bastam alguns minutos ao lado dela para sentir o sangue quente (e doce) paraguaio circulando em suas veias.

Perla já se apresentou em muitos países. Sempre para cantar um repertório eclético, que une desde as canções tradicionais do Paraguai, até touradas espanholas, músicas românticas e versões para sucessos italianos. Mas foi o disco completo dedicado ao repertório do extinto ABBA que a catapultou, principalmente, no Brasil. É deste trabalho que saiu o seu maior hit até hoje: "Fernando". A sua voz de timbre grave e com uma extensão e volumes possantes chamou a atenção do público carioca assim que ela começou a primeira temporada de shows no Rio de Janeiro no começo da década de 70. Um dos mais impressionados foi nada menos do que o dramaturgo Nelson Rodrigues, que a comparou a divas como Ima Sumak, Ernna Sak e Edith Piaf.

Natural da pequena Caacupê - cidade que fica a 56 km da capital Assunção -, Perla já veio inúmeras vezes para Mato Grosso do Sul. "O MS me lembra muito o meu país. A primeira vez que vim beijei o chão deste lugar. O Papa foi o segundo a fazer isso", brinca, referindo-se ao ato do finado Papa João Paulo II, que beijou o chão de MS em sua visita ao país na década de 90 em um gesto que repetia mundo afora. Desta vez a cantora estava passando por Campo Grande para, é claro, se apresentar na... Colônia Paraguaia! Até cabe o chavão de que ela “se sente em casa” por estas bandas. Na Colônia Paraguaia existe uma capela em homenagem a Virgem de Caacupê, considerada a padroeira do Paraguai – como se fosse a Nossa Senhora Aparecida para os brasileiros. Ou seja, a cidade natal de Perla é a “Aparecida do Norte” do Paraguai.

A cantora está há 4 anos sem gravar. Perla quer agora fazer um disco diferente, com repertório mesclando grandes sucessos e canções novas. E – reflexo dos tempos - lançá-lo de forma independente. Será o 55º disco da carreira, um número que pouquíssimas cantoras alcançam, alcançaram ou alcançarão.

Perla garante que até hoje faz via sacras em rádios, jornais e tevês pelas cidades que passa. A dedicação à música e ao trabalho artístico ela garante que foi influencia de seu pai. Aliás, ele é o personagem mais citado durante a entrevista. "Meu pai era meu herói e quem me ensinou tudo", não cansa de ressaltar a morena de olhos negros-jabuticaba e unhas coloradas. "O sol brilha para todo mundo e eu faço parte desta luz", fala carinhosamente a cantora. E avisa em alto e bom som. “Eu quero gravar um DVD em Campo Grande. Já falei com o prefeito sobre isso. É um sonho que quero realizar", ressalta. Confira abaixo o bate-papo:

Rodrigo Teixeira - O seu dom artístico já vem de família. Fale sobre isso!
Perla - Sou filha de músicos. Sou a mais velha de seis irmãos, sendo cinco mulheres. Meu pai era cantor de bailes, domador de cavalos, barbeiro, padeiro, sapateiro, pedreiro... Paraguaio de origem espanhola. Índio. Minha mãe vinha de parte de alemão e francês. Dona Lídia, olhos verdes. Meu pai tinha formado alguns grupos de rapazes, era professor... Está falecido a 10 anos. Dom Pedrozo. É meu ídolo. Para ser artista não foi fácil, porque tinha que satisfazer meu próprio pai. Eu queria estar no palco. Meu pai queria dois filhos homens. Ele era barbeiro e cortava todo o nosso cabelo. Eu sou da roça. Apaixonada por cavalo e muito religiosa. Sou do interior. Minha felicidade está nisso. Tem muita semelhança com Mato Grosso, Campo Grande... Meu pai não queria que eu estudasse. Minha mãe era governanta em Assunção. Então com seis, sete anos eu tomava as rédeas do lar já na roça. A primeira vez que vi um carro na minha vida eu entrei debaixo da cama. Nosso meio de transporte era cavalo.

Você está há quanto tempo morando no Brasil?
Há 38 anos. Primeiro morei no Rio de Janeiro por 20 anos. Lá começou minha vida como solista. Porque fazia parte de um grupo musical formado pelo meu pai chamado As Pequenas Maravilhas. Desde pequena já via por trás dos buracos das madeiras os bailes e os ensaios do meu pai, que era meu ídolo. Naquele tempo não tinha nem rádio. Era tudo ao vivo. Aquelas roupas bem trajadas e tudo acústico. Quando ele queria me castigar me mandava comprar sabão para fazer a barba dos clientes. Aí ele dizia: "Você vai ver como é a voz da minha filha". Eu cantava aquela "Ramon, Ramon..." Ele mandava ir gritar do quarto coqueiro e eu tinha que dar um possante. Ele ensinava como respirar, como usar o corpo. Tanta coisa. Minha história dá um filme.

E como você veio morar no Brasil?
Quando os turistas chegavam em Assunção, tinha a novidade de dois pequenos cantando. Era eu e Fanny, minha irmã. Eu tinha 8 anos e ela 7 anos. A gente ia para Assunção para cantar e as pessoas começaram a falar muito. Cantávamos na casa de grandes personalidades, como o ex-presidente Stroessner. Havia muita proposta para contratar o grupo. Com 15 anos a gente foi para o Chile. Hoje meu irmão está na Alemanha tocando harpa, minha irmã Fanny foi para o Japão, mas fui a primeira a me desfazer do grupo. Foi doloroso. Com 20 anos vim para o Brasil porque casei com um brasileiro. Eu conheci este brasileiro, filho de portugueses, na noite do Paraguai. Embora, ele gostasse mais da minha irmã do que de mim. Ele atirou numa e acertou na outra.

E você já se interessava pela cultura brasileira?
Desde os tempos de escola. Mas muita coisa conheci só depois que me mudei. Como a história da Carmen Miranda, por exemplo. Só depois soube que ela era portuguesa. Ela fazia tudo pelo Brasil, como eu também faço pelo Brasil e Paraguai. Eu fiz tudo isso que está fazendo o Alexandre Pires agora e o Roberto Carlos antes. A única mulher que defendia a música latina lá fora era eu como "brasileira escondida". O pessoal falava "nossa, como tu hablas tan bien lo espanhol?". Até os arranjos achavam que eu tinha gravado em Los Angeles, Nova Iorque ou Espanha. Ainda na década de 80 muita gente tinha a idéia de que o Brasil só tinha macaco, futebol e mulata. Isso aconteceu muito quando fui para os Estados Unidos assinar contrato com o grupo Abba. Todo mundo achava que eu gravava no exterior e eu dizia que, modestamente, não. Era no Brasil.

Você casou então e veio para o Brasil...
Não foi fácil para casar, não é assim não. Para me tirar debaixo da asa da minha mãe e do revólver e da faca do meu pai foi duro... Os paraguaios não conseguiam se aproximar da gente. Tive que enfrentar meu pai. Eu me apaixonei por este brasileiro. Mas era o segundo relacionamento dele. Então, em 1971, vim para o Brasil depois de casar na frente do meu pai no Paraguai. Sou viúva há 19 anos.

E como foi sair do Paraguai para integrar uma família tradicional do Rio?
Eu fiquei doente. Vim direto para o Rio e fiquei 20 anos. Vim para uma mansão, de uma família rica. Dois irmãos. Os Rodrigues Almeida tinham fábrica de porcelana, cristais... Meus sogros são apaixonados por mim. Meus sogros percebiam que eu ficava triste, porque estava saindo dos meus costumes para me adaptar ao Rio. Mas 15 dias depois de chegar me levaram para jantar na Vila Isabel na cúpula, onde freqüentava a nata artística do Rio. Eu não tinha disco. Um amigo do meu falecido marido me perguntou se eu não queria dar uma "canja", que não sabia o que era. Ele me explicou. Uma casa linda chamava Bigode do Meu Tio e estava tocando três músicos cegos, piano, contra-baixo e violão. Eu queria estar naquele palco. Eu dei esta canja e o Jorge Rodrigues, filho do Nelson Rodrigues que eu fui conhecer depois, me chamou para uma experiência de três meses. Foi a ponte de tudo.

E aí você começou a chamar a atenção...
Televisão, rádio, jornalistas... Todos "queriam esta paraguaia". Os brasileiros estavam carentes de músicas latinas e as paraguaias. Viajava para muitos clubes. Sem disco ainda. Eu sou uma cantora que veio do show para o disco. Eu fiquei como atração internacional desta casa de Vila Isabel em que também tocavam Caubi Peixoto, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Vinicius de Moraes, Elizeth Cardoso. Eu entrava antes dos shows. Aí muitos cronistas como Nelson Rodrigues, Bittencourt e Arthur da Távola escreviam muitas coisas, como "gogó de ouro". As pessoas pediam muitas músicas e diziam que queriam escutar na minha voz. As pessoas falavam muito que no Brasil tinha uma cantora de voz muito possante, tipo Ângela Maria, queriam me levar para o Flávio Cavalcanti... As mesas eram decoradas com flores e quando entravam as músicas espanholas, touradas, mexicanas e as galopeiras paraguaias as flores voavam todas no palco. Depois tinha que entrar um seresteiro para esfriar a platéia para o show principal. O Nelson Rodrigues ia me receber nas escadarias. Era um cavalheiro.

E nesta casa já surgiu a proposta de fazer o primeiro disco?
Sim. Surgiu a oportunidade de gravar o primeiro LP pela Odeon. Mas a Odeon só queria artista que gravasse música para fora. E eu me cansei de cantar para gente que pagava couvert artístico. Eu queria cantar para o povo. Parei três meses para ir cantar em programas. Naquela época eram quatro gravadoras internacionais que brigavam por mim: RCA, CBS, Philips e Odeon. Quem dava mais levava. Depois saí da Odeon e parti para a RCA em compacto simples.

E qual foi a sua primeira música que fez sucesso?
"Estrada do Sol". É uma versão para uma música italiana. Me criticavam por causa da minha pronúncia do sooool... O meu marido me dava bronca. Eu chorava e dizia que queria aprender. Mas o maior sucesso de todos os 54 discos gravados é "Fernando". Até hoje continua. Mas toquei muito "Malaguenha", "Cucuru Paloma", boleros...

A sua obra é mais consumida no Brasil do que no Paraguai?
Sem dúvida. Tem jornalista paraguaio que não sabia que eu era paraguaia há pouco tempo. Eles ficaram com ciúmes: "Estes brasileiros roubaram nossa paraguaia? Que negócio é este?"

Incluir as músicas mais tradicionais do Paraguai sofria alguma resistência por parte das gravadoras do Brasil?
Foi uma luta. Tinha diretores que falavam que queria música comercial e não era a cara. Eu respondia que ele estava trabalhando dentro da gravadora, mas quem iria comprar os discos era o povo. Já pensava nisso. Eu já fiz e estou fazendo parte da família do Brasil e do meu país. Já sou uma história.

Qual o ponto mais alto de sua carreira?
O Festival Vinha Del Mar e no badalado City Hall na 5ª Avenida de Nova Iorque. Eu fui uma das primeiras artistas da América Latina, junto com a Bianca Jagger, ex-mulher do Mick Jagger, que é porto-riquenha, a participar da campanha do Teleton. Pela Unicef eu fui para vários países como Chile, México, Nicarágua, Colômbia... Todo mundo confunde a minha nacionalidade.

Como surgiu a idéia de gravar o disco com versões do Abba?
Meu diretor artístico falava para o meu presidente, que era argentino, que tinha uma jóia diferente para defender as músicas latinas com uma voz possante e competir nos Estados Unidos. Estava abrindo para nós o leque no começo dos anos 80. Eu andei muito com o Julio Iglesias por aqui. Quando ele era curador do Real Madri. Ele não cantava nada e ficava de olho em mim. A "espanholita". Ele era namorador e o meu marido falava que iria “dar porrada” com uma cara que não era nada bonita. Meus colegas artistas não podiam se aproximar.

Você chegou a sofrer algum tipo de preconceito no meio artístico do Brasil?
Uma vez o empresário Marcos Lázaro, que era argentino, deu uma humilhada em mim e nos artistas paraguaios. "Vocês vêm para o Brasil cantar por um prato de comida". Isso me doeu muito. Disse: "Pelo menos meus patrícios não vieram roubar. Cantamos honestamente". Eu saí chorando. Ele trabalhava com a Elis Regina, que perguntou "quem era esta gringa". Eu não sou gringa não, eu sou cantora latina e do Paraguai. O Roberto Carlos uma vez na ponte aérea me falou algo que marcou: "Você veio para ficar!".

O que achou dos paraguaios terem elegido o Fernando Lugo, o primeiro presidente de esquerda do país?
Ele é bem-vindo. Mas independentemente de ser de esquerda ou direita, que ele seja um bom paraguaio. Sempre me perguntam. Eu acompanho, mas vivo mais no Brasil. O que eu acho é que o que conta são as cores da nossa bandeira. Ele deve fazer uma bela orquestra e ser bem afinado. Isso não se faz de um dia para outro. Eu quero o melhor para o meu país, sem violência, mais cultura, saúde e vamos levando estas mensagens. Já me ofereceram cargos, mas eu sou anti-política. Prefiro trabalhar com a minha música a ficar lá. Não é fácil ser presidente, depende dos ministros. O povo não pode se acomodar e tem de exigir, mas sem violência.

Você não acha que a postura dos músicos paraguaios precisa mudar e haver uma profissionalização? Dar um ‘up grade’, pensar mais em termos de shows, fazer apresentações com a polca como os argentinos fazem com o tango...
Claro. Mas depende muito da cabeça de cada artista. Cabe ao artista se valorizar. Eu vou a cada dois ou três anos no meu país fazer um concerto. Tem muitos que vão por um dinheirinho. Cada um tem seu posto e a sua profissão. A noite é uma escola em qualquer parte. O único grupo do Paraguai que ficou famoso mundialmente foi o Luis Alberto Del Paraná e os Paraguaios. Eles levaram a 81 países a nossa música. A esposa dele me passou o título, pelo meu timbre de voz, na minha casa no Rio. Depois veio o Los Índios. Nós temos que sair do nosso país. O Brasil faz os seus próprios artistas. Aqui é o mundo, tem coisas descartáveis e coisas que ficam aqui. O Paraguai é pequeno e quando chega a uma certa altura você quer sair. Tem artista que se acomoda e outros que querem voar. Eu sou dos que querem voar. Eu sou um condor, um pássaro e não quero ninguém me segurando. Tudo depende da postura do artista, mas não metido a besta. Não precisa se drogar, se prostituir ou partir para outras para aparecer. O nosso dom está nas mãos, no olhar, no sentimento e na emoção de interpretar e levar mensagens bonitas. Esta é a minha missão. E me orgulho por fazer isso pelo meu país e sentir a bandeira flamejando. Têm artistas que são bons e não morrem nunca. Outros são passageiros, sem alma. Nós não podemos perder a sensibilidade.

Você acredita que esta música paraguaia, que muitos autores inclusive de MS se inspiraram e bebem da fonte até hoje, soa estranha para o público brasileiro?
É só questão de espaço. É a mídia. Televisão e rádio têm que dar espaço para a gente. Mato Grosso do Sul tem um estilo. Estou a 38 anos no Brasil e agora que descobri o forró. Uau, que som. Não precisa ir para Porto Rico. Está tudo aqui. A primeira vez que estive aqui em MS, com o Caçulinha que hoje está no Faustão, eu beijei o chão desta terra. O papa foi o segundo.

A música paraguaia precisa de uma renovação, no sentido de que sempre as mesmas músicas são pedidas, assim como acontece com a Bossa Nova?
Não. Muita coisa melhorou. Agora todos querem ser Perla. Mas eu digo que "seja você mesmo". Mas nós temos talentos, assim como tem no Brasil. Quem canta, canta. O artista que canta na noite é o verdadeiro artista. Igual a mim não sei, porque tem outros que surgiram.

Você recebeu convites para posar nua?
Muitos. Meu primeiro LP fiz com umas fotos sensuais. Naquela época estava surgindo a Gretchen. Alguns jornalistas chegavam e diziam que queriam umas fotos mais sensuais. Eu dizia que ele tinha entrado no lugar errado. Que era a casa da cantora Perla. Fui convidada a fazer a personagem Iracema no filme "O Guarani", mas eu tinha um marido ciumento. Mas no palco eu já sou uma Iracema, uma índia, uma guarani.

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